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Name: Allec Ribeiro.
Age: 21 years old.
Birthday: 08/06/1991.
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[9/11/2012]


(Sorry, this post is going to be in Portuguese. It is a short story based on something that happened long, long ago, during a small tabletop RPG session. You may not understand a thing or two, but I hope any Brazilian readers enjoy!)


SOMALIENDIEL olhou ao seu redor. Poucos homens estavam perto dele. Poucos homens vivos. KIROS continuava matando a tripulação do navio com facilidade, embora seu braço, com suas carapaças macabras e muco vermelho ao invés de sangue, estivesse se expandindo cada vez mais rápido, invadindo seu rosto, criando novos dentes sobre os antigos, preenchendo seus olhos com negritude. Em breve, ele estaria descontrolado. Jogou a cabeça e os ombros para trás, desviando por pouco do corte horizontal de seu oponente. Jogada pelo chão, acorrentada feito uma escrava, estava a guerreira berserker, fonte daquele conflito sem sentido. Ela sorria em seu sono, mesmo sangrando da cabeça e dos braços, mesmo com a pele em carne viva por tentar forçar as correntes. Deu um passo para o lado, dessa vez evitando um corte vertical. Por mais que olhasse, não conseguia encontrar o cigano ou a meia-elfa. Era certo que o cigano estava jogado em algum canto, morto ou fingindo estar, mas a ausência da meia-elfa o preocupava, pois, assim como sua irmã sem nome, ela tinha sede de sangue — jamais perderia uma batalha como aquela. Defendeu o terceiro corte do sabre com uma flecha de prata que carregava na cintura. Podia não ser forte o suficiente para segurar o golpe, mas conseguiu direcionar a arma para qualquer lugar que não fosse o seu estômago; o pirata o olhou com um misto de surpresa e respeito, e Somaliendiel o encarou com o mais breve sorriso antes de continuar sua busca. Cerca de vinte homens cercavam Kiros, que parecia cada vez menos homem, cada vez mais monstro. Outros dez assistiam ao duelo entre Somaliendiel e seu capitão, e embora o elfo continuasse vivo, era claro que não tinha chances de vencer: suas única armas eram um arco, que não tinha tempo de sacar ante os ataques insistentes do pirata, e uma única flecha de prata, com a qual ele havia demonstrado ser letal, mas não contra o capitão, especialmente depois que seu capuz caiu em meio aos saltos que fazia, revelando as orelhas grandes e pontiagudas de um elfo; aquele capitão era conhecido por detestar elfos.

E assim, embora conseguisse se esquivar bastante, vez ou outra recebia um corte, primeiro na barriga, depois no braço, perdendo cada vez mais terreno para o capitão, e eventualmente chegando aos limites do convés, onde sua desvantagem era clara e o mar o abraçaria se fosse atingido. Por que, então, não parecia de modo algum estar prestando atenção ao próprio duelo? Seus olhos verdes se moviam para todas as direções, voltando para o capitão apenas quando seu sabre chegava perto demais. Por vezes, nem isso. Somaliendiel parecia estar se movendo por puro reflexo. Com o capitão se aproximando, sorrindo cheio de dentes, Somaliendiel passou a procurar cada vez mais rápido, e nada do que via parecia ser o que buscava. Por fim, o capitão apontou seu sabre:

— É o fim pra você, elfo — disse ele, preparando seu golpe, e o elfo notou, satisfeito, que não tinha sido chamado de pequeno; devia ter entretido o capitão pelo menos um pouco. Sorrindo, o capitão deu um rápido passo em frente, cortando na horizontal com toda a velocidade e pouco depois lançando uma faca, até então escondida em sua manga, na direção do elfo. Somaliendiel previu o corte, mas não a faca. Saltou, um salto acrobático para pousar sobre a borda-falsa, para fora do alcance do sabre, mas foi atingido na perna e perdeu o equilíbrio. E, nos curtos momentos em que cambaleava para trás, encontrou o que procurava. Então caiu.



:::

Cortando cordas. Era o que o cigano estava fazendo, cortando cordas. Mas não totalmente. Deixava sempre um pouco, para terminar o serviço mais tarde, quando fosse necessário. Ouvia os gritos e outros sons de batalha vindo do convés, as bravatas dos piratas, mas continuava cortando cordas. Com toda certeza, seus companheiros pensavam que estava morto, atirado ao mar pelos piratas, ou simplesmente escondido. Não deixava de ser verdade: tinha mesmo sido atirado ao mar, e certamente estava escondido. De suas facas, restava apenas uma. Precisavam de uma rota de fuga.



:::

Em toda a sua vida, Kiros nunca havia lutado tanto. Como mercenário, sua vida era uma corrente interminável de batalhas. Sempre soube que era esse o caminho que deveria trilhar, pois seu braço — sua maldição — não poderia ser usado para qualquer outro fim. E assim, batalhou, mas não como o braço queria: sempre por uma causa nobre, sempre pelo bem maior, como um paladino, embora nunca pudesse se tornar um. Mas agora, era diferente. Pelo bem maior, precisava vencer aqueles homens. Por sua missão, por seus companheiros, mesmo que de apenas alguns dias, não deveria falhar, e para isso precisava de poder.

Kiros carregava uma espada, e sempre mantinha o braço coberto por faixas, para que outras pessoas não precisassem partilhar do horror que carregava. Quando foi rendido, jogaram sua espada em algum canto, alegando que era uma porcaria e que não merecia fazer parte dos tesouros do navio. Era verdade. Kiros nunca usava aquela espada. Mesmo assim, se deixou ser amarrado e levado ao convés, pois queria saber o motivo daquele ataque. Exceto talvez pela meia-elfa, nenhum deles trazia armas ou armaduras mágicas. Fizeram um acordo que seria muito mais lucrativo se voltassem vivos de Galrasia, quando então teriam tesouros aos montes para serem pilhados. Kiros não via motivo para atacar ali, no meio da viagem, e continuou sem entender nada até chegar ao convés e ver a guerreira berserker se debatendo no chão.

Deu um suspiro resignado.

— Esta meretriz — começou o capitão, visivelmente irritado — tentou usurpar o meu navio. Seria muita audácia, mesmo para um grupo de aventureiros como vocês, mas ela tentou usurpar o meu navio sozinha. Espero uma explicação antes que eu a mate.

— Eu quase consegui — berrou a guerreira, espumando pela boca. Rompeu as cordas que a seguravam, socou um homem para fora do navio, mas a prenderam de novo, dessa vez com correntes. Um dos homens deu com o remo em sua cabeça, e ela desmaiou.

— É louca — disse Kiros.

— Disso eu sei — retrucou o capitão.

Kiros olhou para o lado e viu que o homem que a guerreira tinha socado estava sendo puxado de volta. Dois homens prendiam a guerreira ao chão, pois ela se debatia mesmo inconsciente. Estava sorrindo, seus dentes estavam cheios de sangue, e por isso a espuma saía vermelha de sua boca. Kiros olhou em volta e viu uma destruição razoável, para os padrões dela. Um homem sem um braço e sem metade do rosto, ambos provavelmente arrancados a dentadas; outro com o corpo afundado na madeira grossa do mastro principal; um terceiro com o sabre entortado e as entranhas derramadas no chão. Deveria deixar que ela fosse morta, depois de ver toda aquela morte desnecessária e violenta; tentar negociar com o capitão, contar a ele que a loucura de um não definia todos. Mas não podia. Sua irmã meia-elfa, que já deveria estar presa em algum outro canto do navio, iria jurar vingança, e o grupo estaria separado, incapaz de desbravar Galrasia. Por esse motivo, Kiros urrou e rompeu as amarras que o prendiam, saltou em direção ao capitão e socou com o braço enfaixado; o capitão se esquivou e golpeou o braço com seu sabre, cortando as faixas, mas por baixo delas estava o inferno. 


Cinco dedos, nenhum deles humano, todos terminados em garras que mais pareciam adagas; a mão tampouco era humana: os dedos eram três no centro e um em cada lado, todos do mesmo tamanho. Seu braço era uma carapaça limpa, dividida em segmentos. Kiros girou a mão, depois o antebraço, o braço e por fim o ombro, apenas para mostrar que podia. Aproveitou o momento de confusão e horror para golpear o capitão, e os homens que não gritavam de loucura agora se aproximavam, assustados mas prontos para atacar. Kiros olhou para os sabres e adagas com um sorriso pouco característico.

Já estava sendo consumido pelo pagamento.

Desde o começo, Kiros sabia que aqueles piratas não eram páreo para ele. Esperava problemas desde que colocaram os pés no navio, e por isso sabia. Mas não contava com a imensa habilidade do capitão, que se mantinha fora do alcance do braço, golpeava nos pontos certos e berrava ordens para seus marujos. Pensou que perderia, mas seus agouros foram interrompidos por uma flecha. Kiros não parou de atacar e defender, mas soube que Somaliendiel estava no convés, e a luta se tornou equilibrada. Assim que o capitão partiu em sua direção, o elfo prendeu seu arco nas costas e sacou do manto uma flecha prateada, que passou a segurar como uma adaga; os dois duelaram. Somaliendiel, com seu tamanho de criança e olhos verdes de jade, segurando uma única flecha, contra um dos maiores espadachins do Reinado. Seu manto branco quase brilhava contra o sol, serpenteando ante os movimentos rápidos de seu pequeno portador, que se esquivava de um golpe após o outro e mais nada, pois o capitão era rápido demais até para ele. Mesmo assim, era uma distração: sem as ordens de seu capitão, a tripulação não soube lutar contra Kiros, que voltou a matar e matar, primeiro esperando, rezando para que alguém os tirasse dali, depois simplesmente matando. Seu braço não era mais braço, a carapaça rasgava a pele e crescia em seu lugar, e Kiros sentia sua corrupção no próprio rosto. A dor era quase insuportável, mas não tinha outra escolha senão continuar a batalha.

Até que sentiu o navio tremer.



:::

Somaliendiel caiu na água com um estalo de ossos se quebrando, e afundou lentamente. Do convés, o capitão olhava, incerto de que a queda havia matado seu oponente; na verdade, quase certo do contrário, e certo. Soma não estava morto, nem mesmo estava tão ferido, mas se deixou afundar até conseguir ver o lado de baixo do navio, quando então se moveu. Relutante, soltou sua aljava do corpo, guardando apenas algumas flechas para si, e deixou que ela flutuasse até a superfície. Com um impulso, nadou para mais perto do navio, e permaneceu encostado a ele enquanto escalava sob a água tentando chegar a popa da embarcação. Era verdade que não estava muito ferido, mas ainda estava ferido. Sentia a água salgada entrando em seus cortes, e era difícil prender a respiração com uma de suas costelas quase perfurando seu pulmão. Mesmo assim, escalou e escalou, e logo não estava mais sob a água; agora, eram a gravidade e o ar pesado que puniam seus ferimentos. Praguejou silenciosamente enquanto continuava escalada, se aproximando cada vez mais do seu alvo: a cabine do capitão. Do convés, ouvia os urros de Kiros e os gritos de dor da tripulação, e se sentiu revoltado. Dias de preparo meticuloso, de negociação com o capitão do único navio que poderia levar o grupo para Galrasia, um navio pirata dos mais infames, mas ainda assim o único. É claro que seriam traídos quando voltassem, era assim que o capitão agia: atacando grupos aventureiros voltando de suas missões, cansados mas cheios de tesouro; mas poderiam morrer muito antes, por isso aceitaram o acordo e pagaram ao capitão. Outro problema era que o capitão odiava elfos; para a viagem, Somaliendiel se tornou Soma, escondeu as orelhas sob o capuz e cobriu a tatuagem no rosto com um curativo, enquanto que a meia-elfa apenas amarrou o cabelo, pois suas orelhas não eram longas ou pronunciadas como as do companheiro. As negociações foram feitas pelo cigano, que para a surpresa de todos tinha uma língua ferrenha e sabia barganhar como ninguém. Kiros se postava ao lado dele como um guarda-costas, e fazia a coisa toda parecer mais oficial. Um contrato foi assinado sob o olhar de um clérigo de Khalmyr, que o leu em voz alta para se assegurar de que dizia apenas a verdade. Deixaram o capitão do navio pensar que estavam tomando precauções amedrontadas, quando na verdade sabiam muito bem com quem estavam se metendo. Pouco antes da viagem, colocaram a guerreira berserker para atacar o navio em disfarce; ela quase matou Kiros, mas deu autenticidade à missão deles. Sem dúvidas, voltariam com tesouros.

E o que o revoltava era que tudo isso tinha sido jogado para o alto por um impulso estúpido dessa mesma guerreira. Somaliendiel ouviu muito bem as palavras do capitão para Kiros, em especial esta: meretriz. Só havia duas mulheres no grupo, e uma delas era mais menina do que mulher, então a meretriz só podia ser a guerreira. Suas suspeitas foram confirmadas quando a viu no chão, acorrentada e sorrindo. Kiros decidiu lutar, e o elfo logo percebeu que essa era realmente a única escolha, afinal a meia-elfa do grupo era também meia outra coisa: meia-irmã da guerreira. Jamais os perdoaria por deixar sua irmã morrer, e por mais que Kiros detestasse admitir, era a combatente mais forte do grupo; o que um elfo arqueiro, um homem que dependia completamente de seu braço atroz e um cigano poderiam fazer sozinhos em Galrasia? Com isso em mente, o elfo chutou a janela da cabine do capitão, e encontrou o que queria: a meia-elfa amarrada e inconsciente no chão.

Deu um tapa nela.

— Sabia que era você, moleque cretino — disse ela, sem gritar, pois também sabia muito bem onde estava.

— Seu sono é muito pesado — respondeu ele, cortando as amarras com sua flecha de prata. Ao ser solta, a meia-elfa estalou a mandíbula e cuspiu um dente. Pensou também em socar o elfo, mas seria perda de tempo, então apenas olhou em volta, resmungando que tinham roubado sua arma.

Sua arma foi a chave, pensou o elfo, então não teve tempo de pensar mais nada, porque a meia-elfa socou o chão com a força de derrubar gigantes.



:::

— É um monstro! — alguém gritou. — Uma serpente marinha está atacando nosso navio!

— Fique quieto, imbecil — resmungou o capitão, olhando atentamente para a porta de sua cabine enquanto seu navio tremia; e o capitão viu, muito mais rápido do que o elfo, o que estava errado: talhos. Dois, pequenos o suficiente para se misturar a textura da madeira, grandes o suficiente para só poderem ter sido feitos por uma arma. Recentes, o capitão sabia, e o maldito elfo também devia saber, porque estivera procurando sinais de luta durante a droga do duelo! Por isso seus olhos nunca paravam, nunca encaravam o capitão; por isso suas esquivas eram às vezes tão exageradas, e às vezes tão calculadas! 


Fervendo de raiva, o capitão correu para dentro de sua cabine, e encontrou a fonte dos tremores: um enorme buraco no chão, e ainda outro no deck abaixo. Estavam, o maldito elfo e a outra garota que lutou com fervor para ajudar a meretriz a usurpar seu navio, em seu porão secreto, provavelmente roubando seus tesouros, e haviam esburacado seu navio.


:::

Pouco antes.

Enlouqueceu? berrou o elfo, jogado para trás pelo impacto do soco.

— Sinto que minha arma está próxima — disse a meia-elfa, e pulou no buraco que havia acabado de formar, o navio ainda tremendo.

Soma a seguiu, resignado; aquela meia-elfa sentia muitas coisas, mas nenhuma delas era ligação sobrenatural com a própria arma. Sabiam muito bem que, se a arma tinha sido levada, provavelmente era para o porão secreto do navio, a existência do qual estranhamente conhecida por toda a tripulação. Mas ambos também sabiam o caminho, e aquela destruição toda não era necessária.

— Não percebe que eu a resgatei furtivamente, maldita, para que então pudéssemos escapar? — ele tentou.

Para seu desespero, a meia-elfa não respondeu; ao invés disso, deu outro soco que novamente fez tremer o navio, abrindo outro buraco. Como a sala — o quarto da tripulação, considerando as camas, redes e roupas espalhadas — era menor que a cabine do capitão, praticamente afundou inteira; caíram em uma sala cheia de caixotes e baús que, com toda certeza, guardava os tesouros do navio. Em um canto, a arma da meia-elfa. Somaliendiel não era, nem de longe, o mais honrado dos elfos: usava seu tamanho de criança para pegar inimigos desprevenidos, fazia ataques sorrateiros, e usaria veneno em todas as suas flechas se pudesse. Mesmo assim, deixou sua companheira meia-elfa recuperar sua arma e mais nada. Estavam naquele navio por um acordo, que traíram sem necessidade. Mataram boa parte da tripulação do navio, ao invés de deixar a responsável por tudo aquilo pagar o preço. E agora, queriam pilhar a embarcação? 


De maneira alguma. 

Mas a meia-elfa discordava:

— Esses caras são piratas, Soma — disse ela.

— E nós, o que somos? — perguntou o elfo, com uma altivez que não demonstrava desde Lenórienn.



:::

Kiros estava sozinho no convés.

— Ei — disse o cigano, colocando a cabeça pra fora de algum lugar e olhando, assustado, o que tinha acontecido.

Kiros demorou para se importar.

— Está sozinho aí?

Kiros meneou a cabeça para o lado, como se a resposta fosse óbvia, e era.

— Estamos perto de Galrasia — disse o cigano — e tenho aqui um bote. Já está tudo preparado.

Kiros não entendeu.

— Já está tudo preparado — repetiu o cigano enquanto subia para o convés. — Podemos fugir daqui, Kiros.

Kiros. Kiros era seu nome, e não... e não aquele outro nome. Kiros olhou para o cigano, que agora lhe estendia uma mão.

— Então vamos, amigão — disse o cigano, levantando Kiros do chão, apertando forte sua mão humana. E foram, tentando não pisar nos corpos mutilados da tripulação da Bravado. — Pode descansar agora.



:::

Somaliendiel olhou para a meia-elfa, e então para o capitão: a meia-elfa tocava a ponta de sua arma, um tipo de catavento feito de lâminas; o capitão apenas a encarava, com sabre e faca em mãos. Somaliendiel ainda tinha seu arco apontado para a meia-elfa; ela estava consciente disso, e antes que ele pudesse atirar, girou as lâminas, no mesmo movimento puxando com força o fio ligado a elas, e o elfo soube que a arma estava engatada. Deu um salto para trás, ficando ao lado do capitão.

— Que diabo de arma é essa, afinal? — perguntou o capitão, mais para si mesmo do que para qualquer um deles. Em resposta, a meia-elfa encostou as lâminas giratórias em uma das vigas que ainda sustentavam o teto; a arma dilacerou a madeira. Soma sabia que a arma da garota era excepcional, um engenho de um ferreiro louco e genial, morto há muitos anos, que ela havia encontrado em uma masmorra: a haste era de uma alabarda, mas conforme se aproximava do topo, ficava mais parecida com a de um cajado; engrenagens tomavam o lugar do que deveriam ser as porções transversais, algumas ocultas em tecido, todas quase sempre em movimento; e, movimentadas pelas engrenagens ou pelo vento, estavam as lâminas, seis ao todo, curvadas como sabres, mas muito mais grossas e pesadas. Ao girar as lâminas, as engrenagens também giravam, e as engrenagens eram ligadas a um fio que se embrenhava cada vez mais entre elas, conforme giravam. Se puxasse o fio, as engatava, maximizava seu movimento, tornava a arma uma serra que só parava de cortar quando tocasse em algo que resistisse, e poucas coisas resistiam.

É claro que o capitão sabia de quase tudo isso, pois tinha enfrentado a arma poucas horas antes.

— Sabe que vou matar você depois de acabar com essa aí, não sabe, elfo? — perguntou o capitão.

— Sei que vai tentar — respondeu o elfo, mas era bravata: o capitão estava ileso, enquanto que ele estava com ferimentos ainda ardendo por culpa do mar salgado, e vencer a meia-elfa provavelmente custaria mais. Soma suspirou, resignado, e novamente treinou seu arco nela, dessa vez retesando a corda.

Foi quando o capitão voou para o outro lado da sala, derrubando a parede e revelando o deck de carga.

— Esse palhaço nunca teve chance contra mim — disse a guerreira berserker com um sorriso; mas quando o capitão começou a se levantar, os três se apressaram em correr e subir para o convés, onde encontraram um amontoado de quarenta e tantos corpos mutilados. Somaliendiel quis vomitar, não pela cena, pois Lenórienn havia sido muito pior, mas porque era responsável por aquelas vidas. Mas não vomitou, nem mesmo reagiu. Percebeu, no chão, um rastro de sangue levando à borda-falsa a estibordo, e soube que as pegadas misturadas eram do cigano e de Kiros.

Encontrou os dois sobre um bote salva-vidas, Kiros dormindo sobre o ombro do cigano, que olhou para cima com um sorriso.

— Já está tudo preparado — disse ele, e estava: duas caixas de mantimentos e um par de remos, cordas afrouxadas, prontas para soltar o bote. Soma olhou de novo o rastro de sangue e soube que eles deveriam estar ali há alguns minutos, mas o cigano não parecia com pressa. Estavam esperando.

— É, até que enfim você serviu pra alguma coisa — resmungou a guerreira berserker, pulando sobre o bote. Soma se sentiu nauseado.

Quando todos estavam no bote, o cigano rapidamente cortou uma corda próxima, e atirou sua última faca para cortar a que estava do outro lado; o bote caiu sobre a água, a meia-elfa chutou o navio para dar impulso, e eles remaram para longe, todos vivos. 
Soma então olhou para o navio, viu um de seus canhões. Escutou, mesmo de longe, as faíscas e viu que não seria tão fácil escapar. Fez menção de pegar sua aljava, mas lembrou que a tinha soltado no mar; duas, três, quatro flechas pendiam em seu cinto, mas não havia onde atirar, a não ser dentro do canhão. Soma olhou ao seu redor: Kiros, quase morto, mas sorrindo, dormia ainda encostado ao cigano; a guerreira berserker remava em silêncio; o tilintar de moedas indicava que a meia-elfa tinha mesmo pilhado os baús do capitão pirata; e quanto ao próprio elfo, estava vestido em trapos molhados: seu manto branco estava rasgado em várias partes, suas botas estavam sujas de sangue, o seu e o dos poucos que havia enfrentado; ainda sentia dor ao respirar, pois as costelas quebradas insistiam em apertar um de seus pulmões, e seus olhos traziam a tristeza infinita de quem era o único que percebeu. 

Somaliendiel tirou do manto sua quinta flecha, a flecha de prata que usava para duelar, a flecha que jamais tocava o arco, e suspirou.


:::

— E nós, o que somos? — perguntou o elfo, com uma altivez que não demonstrava desde Lenórienn.

— Somos o grupo que vai acabar com os piratas — ela respondeu. — Esses caras matam, pilham, estupram e torturam; são piratas, são criminosos.

— Para o inferno com isso! — berrou, agora com seu arco treinado nela. — Pouco me importa se são piratas ou gnolls, o fato é que havia um acordo entre nós, e você e sua irmã louca acabaram com isso, e que eu morra fulminado se tiver sido por algum senso de bondade ou dever! Esqueceram de nossa missão, colocaram nossas vidas em risco, causaram morte, e você tem a audácia de me dizer que foi o certo, apenas porque são criminosos? 

— Criminosos que pretendiam nos trair, sim — disse a meia-elfa, intocada pelos insultos.

Somaliendiel a olhou com asco.

— Eu deveria ter deixado sua detestável irmã morrer como o lixo vocês duas são — disse ele.

— Deveria mesmo — disse o capitão, descendo do que restava do andar de cima por um alçapão até então oculto. — Por que não o fez?

— Em nome do grupo — respondeu o elfo, cauteloso.

— Sei que está mentindo, garoto — disse o capitão, e estava certo.

Pausa.

— Kiros decidiu agir em nome do grupo, e eu o segui.

— Realmente, seu amigo agiu em nome do grupo, — concedeu o capitão, — mas por que o seguiu?

Somaliendiel repetiu, em sua mente, as palavras do capitão. Dentre aquele grupo, havia encontrado mais conforto nas palavras e nos gestos de Kiros. Kiros era o único que sabia a verdadeira idade de Soma, e Soma era o único que sabia a verdadeira origem do braço de Kiros. Eram amigos.



:::

Somaliendiel olhou para Kiros, dormindo calmo, e para o cigano... não, não para o cigano: para KIRAF. Soma olhou para os dois, e encaixou a flecha de prata em seu arco. Mirou no canhão.

— Este é um triste fim para seu presente, minha deusa — murmurou o elfo enquanto retesava a corda do arco, alarmando a todos.

E atirou; a flecha voou, brilhando numa brancura infinita, e entrou no canhão da Bravado, que explodiu, fazendo o navio pender para o lado por um único momento de tensão incerta. Mas não virou, apenas caiu de volta, e a onda resultante levou o bote para longe, até que puderam ver Galrasia. 


Somaliendiel então olhou para aquele grupo maltrapilho, para as duas irmãs meretrizes, para os dois amigos estranhos, e se perguntou pela primeira vez o que poderiam fazer contra o imenso poder da Tormenta.

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Por Allec Ribeiro às [5:11 PM]


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